14 de novembro de 2014

Um texto...

Acordo e vou sorrateiramente ao outro quarto. Como sempre a porta está fechada e lá a abro, muito devagar tentando não fazer barulho, com medo do que possa encontrar (ou não) lá dentro. Sim, é verdade, eles estão lá deitados, não a dormir, mas deitados a olhar para mim. Sorrio que nem uma maluca, só não salto para a cama porque ia parecer mal.
– Bom dia! - digo com um sorriso de orelha a orelha. - Já acordados? Não podiam ficar a dormir mais um bocado? Que horas são?
– Já são quase 9 horas. Lá em cima já estávamos fora da cama há muito tempo.

Felizmente não estavam lá em cima. Estavam aqui, comigo, em minha casa. Não era um sonho. Lá em cima queria dizer numa das aldeias que existe em Vila Real, pouca gente, cada mais mais idosos e eles eram os meus avós. Aqueles que estando relativamente longe, estavam sempre perto. E a quem nunca consegui convencer virem morar comigo – porque a idade deles já se nota, porque as condições eram melhores, porque não os queria lá praticamente sozinhos. Não cheguei a perceber bem porquê, mas da última vez que insisti para que viessem viver comigo aceitaram. Nem queria acreditar quando ouvi o “está bem”. Foi só o tempo de prepararem as coisas que deviam e apareceram-me aqui na semana passada. Vieram de comboio para desfrutar mais uma vez da viagem, cada um com uma sacola com alguma roupa e prontos para a aventura na cidade “grande”. E até agora cá estão e eu gosto muito de os ter aqui.

– Já tomou os comprimidos que tem de tomar? - o meu avó, apesar de uma pessoa cheia de genica, tem que tomar não sei quantos medicamentos. Por agora é ele que gere essa toma diária, mas quero inteirar-me dessa situação para o caso de ser preciso. Nunca sabemos o futuro.
– Tomei ainda nem eram 8 horas. Madrugo cedo, voltei para a cama porque estava frio senão já tinha ido passear.
– Pois pois, e ia nem ia tomar o pequeno-almoço? Vamos lá os três para a cozinha, vamos lá.
A minha avó precisa de ajuda para sair da cama, a operação há cerca de dois anos à anca fez com que ficasse meia empenada como gosta de dizer. Depois de estar de pé, é sempre a andar. O avô não precisa de ajuda, reclama comigo porque fui ajudar a avó e era ele que o devia fazer.
– Vá andando para a cozinha preparar o pequeno-almoço, hoje trocamos as tarefas que tal?
– Oh filha, se a Maria me tivesse ensinado a cozinhar ainda te ajudava agora assim não.
– Aqui a Maria fez sempre tudo. - replicou a minha avó.
Era sempre assim desde que me lembrava. A Maria, aka avó, a cozinhar, a tratar de tudo da casa e o Sr. Eduardo a tratar do resto – contas, finanças, hospitais, etc. Ainda tinham a horta e umas galinhas onde trabalhavam em conjunto, dependendo do que fosse necessário fazer. Agora em minha casa, a hortinha passou a ser uns vasos e um bocado de terreno no jardim.
– Hoje é aqui a Maria júnior que vai fazer as coisas está bem? Tenho pão de ontem, quer fazer as suas sopas?
– Pode ser filhinha. - ele já estava sentado à mesa, com os restantes medicamentos para tomar ao lado da tigela que a avó tinha colocado.
– Sente-se, que eu preparo as coisas. Não é preciso estar a esforçar.
– Se tiver sentada é pior. E sempre trabalhei portanto ainda consigo ajudar a matar o bicho ao teu avô.
Teimosa, nem valia dizer o contrário. Coloquei o leite a aquecer, enquanto ela dava o pão para o avô o partir para a tigela.
– Quer pão torrado? Ou come umas bolachas? - perguntei para a avó. O apetite dela cada vez era menos.
– Pode ser umas bolachas e leite com café. O café está no mesmo sítio?
– Penso que sim, ontem não o utilizei. Traga também o açúcar que tem pouco no açucareiro. Ah e hoje toca a vestir roupa quente, porque vamos sair. Estou de folga portanto o dia vai ser todo para passear.
Devido à dificuldade da avó em andar e como não conhecem bem a zona, ainda não tinham saído muito da casa. O avô lá dava os seus passeios mas nada mais do que uma horita, porque estar longe da Maria é que não podia ser. Como também estive a trabalhar estes dias não deu para sair com eles. Hoje é o dia.
Pequeno-almoço tomado. Enquanto se foram vestir, dei uma arrumadela rápida na cozinha e fui-me vestir também. Quando saí do quarto, ouvi-os na sala. Estavam os dois sentados no sofá a ver televisão, com a avó já agarrada ao seu crochet – adoravam os vários canais que tinha, na aldeia a antena só apanha a RTP1 e mal, mesmo depois do TDT, portanto o avô estava sempre de comando na mão a mudar para ver tudo e nada ao mesmo tempo.
– Vamos? - perguntei eu a chegar à sala.
– Mas já? Então não almoçamos? - a avó sempre preocupada com as refeições, era incrível.
– Almoçamos sim, só não vamos almoçar em casa. Vamos lá passear um bocado, já estão cá há uma semana e ainda não viram nada do Porto.
Com uma expressão de quem está a fazer um favor, lá se levantaram e pegaram nos casacos. Entramos no carro, a partir da operação que o lugar de pendura estava reservado à avó para ter um bocado mais de espaço para as pernas. Lá embarcamos, neste dia frio mas sem chuva, rumo à praia. Queria mostrar-lhes o mar. Aquele mar que muitas vezes me acalmou os pensamentos, independentemente da praia onde estava. Fomos da Ribeira a Matosinhos, sempre pela marginal, sempre relativamente perto do mar. A expressão na cara deles deliciava-me. Não me lembro se alguma vez tinham visto o mar. Parei perto da Anémona para darmos um passeio antes de almoço.
A felicidade estava estampada no rosto deles. De braço dado iam um bocadinho à minha frente, em passo ligeiramente lento, mas felizes. E isso conseguia ver. Eu e qualquer pessoa que olhasse para eles.
De máquina fotográfica, atrás deles, ia registando a silhueta deles ao verem as ondas rebentarem. Houve uma altura em que ultrapassei-os e eles, distraídos como estavam, só repararam quando se voltaram para a frente e levaram com uma fotografia minha. Queria registar todos aqueles momentos deliciosos, porque muito do que sou devo a eles.
Fomos caminhando no sentido contrário ao que fizemos com o carro. Ao chegar ao Molhe, perguntei se queriam ir lá, ver o mar na sua extensão magnífica, já que o mar não estava bravio.
– Podemos ir filha. Vamos é devagar.
– Desde que cheguem lá, por mim podem ir como quiserem. Temos tempo. Eu vou indo pode ser? - fui para a frente para me por a jeito e apanhá-los também a jeito. E foi isso mesmo que consegui, quando finalmente eles subiram as poucas escadas. Ao chegar lá, a surpresa na cara deles era fantástica. E depois quando chegaram ao fim do molhe e viram a imensidão do mar adoraram. Pedi para tirar umas fotos, com aquele mar como pano de fundo. Primeiro não queriam, depois lá aceitaram. Consegui umas belas fotos e ainda pedi a um senhor que estava a pescar lá que nos tirasse umas fotos aos três.

Entrámos no restaurante eram quase 14 horas e para quem tem o hábito de reclamar sempre que o almoço não está pronto depois das 12h30 o avô parecia nem se lembrar desse pormenor. Sentámo-nos numa mesa perto da janela mas sem levar com a ventania da porta caso esta se abrisse. E lá vieram algumas entradas para começarmos a petiscar. Perguntamos ao empregado o que era mais salgado e menos salgado para que o almoço fosse minimamente de acordo com as regras que eles deviam comer e lá escolhemos – vitela assada com arroz e batatas a murro. Ainda éramos para escolher o bacalhau assado, só que com medo do sal não pedimos, ficou combinado fazermos no próximo fim de semana em casa.
– Não comas muitas azeitonas. Não são como as nossas. - disse a minha avó para o avô. As azeitonas eram a perdição dele.
– Deixa-me aproveitar. Não é todos os dias que vimos comer fora com a nossa neta. E depois dias não são dias.
– Havemos de vir almoçar fora mais vezes, mas a avó tem razão. Tenha cuidado, por causa do sal. Já sabe que depois a tensão sobe, portanto mais vale prevenir.
Meio desconsolado, lá parou com as azeitonas. E no momento certo, porque vieram de seguida os pratos. A avó pouco comeu, não tinha apetite diz ela – não gosto disto mas hoje não é para preocupações. O avô comeu tudo o que tinha no prato.
– Quer mais? Olhe que podemos pedir para repetir se quiser.
– É melhor não, senão as calças deixam de me servir. Estou satisfeito.
– E ainda vai um docinho? Ou fruta, para sobremesa? - o empregado juntava-se a nós.
– Olhe que se calhar uma fruta não era mal pensado.
– Temos salada de fruta, e bolo de chocolate surpresa por exemplo. Querem que traga o menu para escolherem?
– Para mim fico-me pelo bolo de chocolate. O avô quer a salada de fruta certo? E a avó?
– Pode ser também uma salada de fruta.
– Isto tudo para ser a única a engordar, está a ver? - ri-me para o empregado, enquanto ele anotava os pedidos e ia embora.
– Oh filha fosse o problema engordar! O bolo deve ter muito açúcar e depois os diabretes não perdoam.
– Estava a brincar. Acho muito bem que controlem isso. E já agora, têm de me ensinar quando devem tomar os medicamentos e quais, para eu ficar a saber.
– Sim, sim. Um dia destes...
Não queriam depender de ninguém, nem que ninguém se preocupasse com eles. Só que a idade está lá e, apesar de ter sido uma vitória terem vindo morar comigo, não sabemos o dia de amanhã. Mas pronto, lá chegaram as sobremesas – e que aspecto tinha aquele bolo de chocolate! Não demoramos muito a comê-las e depois de tudo pago lá viemos passear mais um bocado.
– Já estão cansados? Querem ir embora? - perguntei-lhes. Já estava a ficar mais frio e o dia já tinha sido diferente.
– Se calhar é melhor. Já fizemos uma valente ginástica hoje. - a avó tinha esticado as pernas como ainda não o fizera cá. Apesar de cansada parecia bem.
– Então vamos lá. Querem vir até ao carro ou querem esperar aqui?
– Nós vamos, mais um bocadinho não nos faz mal.
E assim os três, voltamos ao carro. Não estávamos longe, verdade seja dita, mas depois de uma caminhada daquelas para quem tem alguma dificuldade é sempre complicado.
Quando chegámos a casa, é que me lembrei que devia ter ido ao hipermercado fazer umas compras. Essencialmente leite e fruta. E já agora o tal bacalhau para ser demolhado.
– Esqueci-me que tenho de ir às compras. Vou lá rápido e já volto ok?
– Está bem filha. Vai dar a bola, agora às 18h e eu aproveito para ver.
– Ah e avó, nada de começar o jantar! Eu venho já portanto dá tempo. - nem me respondeu. Presumo que não vá ligar ao que disse. Todos os dias chego a casa pouco depois das 19h30 e mesmo com as coisas meio adiantadas que eu deixo, já está ela a preparar o jantar. Mas enquanto assim for é bom sinal.
A viagem não é longa, felizmente não está trânsito. No hipermercado, lá encontro em tempo record o que preciso. Acrescento umas bolachas e umas tostas para comerem. E siga para a caixa antes que me desgrace com mais alguma coisa.
Na viagem para casa, deixo-me ir pelos meus pensamentos. Na alegria que vi estampada na cara dos meus avós hoje. Na alegria que é chegar a casa e ter lá alguém. Na alegria que é tê-los cá, tão perto, falar cara a cara com eles, depois de tanta preocupação e telefonemas diários. Felizmente estão bem de saúde, os problemas habituais, mas falam, andam, tratam de si e por vezes de mim. Estão comigo e é o mais importante.
Cheguei a casa 45 minutos depois de ter saído. E dei de caras com a avó na cozinha.
– Vou fazer arroz com ervilhas e ovos escalfados. Já vi que tens aí as coisas, portanto vai lá ver o futebol com o teu avô que ele está a mandar todos para um certo sítio e pode ser que se acalme.
– Mas eu ajudo-a. Aliás tinha dito para não fazer nada, que depois fazia.
– E acreditas-te que eu não ia fazer nada?
Tem a lata de me perguntar isso a rir. Está claro que não acreditava, contudo há sempre uma esperança.
– Vai lá. É o teu clube e tudo. Deixa-me aqui, e liga a televisão daqui que ainda não percebi como se liga.
Arrumei o que tinha trazido na despensa e fui, antes que ela me expulsasse. A minha teimosia vem dela, mas nem por sombras ganha à dela.
Antes de chegar à sala, já ouvia os padres nossos e avés marias que o avô dizia.
– Se soubesse que estava tão interessado no jogo, tinha chamado uns amigos e fazíamos uma jantarada. - só se apercebeu de mim quando me sentei no outro sofá, ao lado dele. Repeti novamente o que disse.
– Boa ideia! Vê no calendário quando há jogos importantes e podemos fazer isso. Sempre convivo com pessoas mais novas.
– Ah obrigadinha pela minha parte.
– Tu sabes que para mim serás sempre a minha pequenina. Só estava a dizer que era pessoas novas e diferentes.
– Eu sei. - disse-lhe a rir. - Quanto está o jogo?
– O teu patrão (aka presidente do meu clube) puxou bem as orelhas na semana passada e estão a jogar bem, já marcaram dois.
E ficámos a ver o que restava da segunda parte do jogo, enquanto a avó cozinhava. Praticamente ao mesmo tempo do término do jogo, a avó aparece para nos mandar comer. Bem mandados, lá fomos. Já tinha colocado pratos, talhares, copos e guardanapos. Tudo pronto, era sentar e comer. Estava uma delícia, como qualquer comida feita pela avó.
Para compensar não ter feito nada durante o jantar, arrumei a cozinha toda. Ela bem que queria ajudar, porém mandei vestir o pijama. Se quisesse depois podia sentar-me no sofá a fazer o crochet dela ou a ver televisão. Foram os dois vestir o pijama. E eu fiquei a arrumar tudo, de forma rápida para que quando a avó chegasse já estivesse tudo pronto.
Ao passar pela sala, eles não estavam lá. Fui espreitar ao quarto e já estavam deitados.
– Então vieram deitar-se?
– Estamos cansados do passeio e assim ficámos já aqui a descansar.
– Fazem bem. Então boa noite. - e dei um beijo a cada um. Era uma prática que tinha sempre que dormia na casa deles e que agora na minha casa não prescindia. Ia a fechar a porta do quarto deles, quando a avó me chamou para dizer algo.
– Sabes, filha, nunca tínhamos visto o mar. Gostei muito, obrigada.
E com este agradecimento, apaguei as restantes luzes e fui para o meu quarto.
Aquela sensação de estar bem, de me deitar e sentir-me leve, já não a tinha há muito tempo. Sentia-me feliz por ter os meus avós perto de mim.



Este texto não foi escrito propositadamente para o blog, no entanto depois de escrito vi que não o poderia utilizar no que queria daí publicá-lo aqui, para que não ficasse perdido nos vários documentos do computador.

7 comentários:

  1. Olá :) Tenho um desafio para ti lá no meu cantinho: http://diariodeumalmaa.blogspot.pt/2014/11/bora-la-liebster-award.html

    P.S.: quando tiver mais tempo, tenho que ler este texto.

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  2. Olá Inês!
    Já me inscrevi no Postcrossing :)

    Mal posso esperar por começar!!

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  3. Este texto dá-me saudades dos meus avós...

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    1. Este texto é ficção, já que pela condição do meu avô não podemos fazer isto...

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    2. Ah, confesso que pensei que era real, uma espécie de relato

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    3. É uma espécie de sonho escrito.

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